3 Retratos - corpos e o entorno


  

"É por demais sabido que a principal forma de relação entre o homem e a natureza, ou melhor, entre o homem e o meio, é dada pela técnica. As técnicas são um conjunto de meios instrumentais e sociais, com os quais o homem realiza sua vida, produz e, ao mesmo tempo, cria espaço. Essa forma de ver técnica não é, todavia, completamente explorada."

Milton Santos em seu livro "A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção"

 

Um corpo conta uma história, ele ocupa um espaço, performa neste espaço, e está em constante movimento (transitando entre espaços), no cinema, tanto quanto em outras artes, o corpo é sempre um tema muito presente, a ideia do humano em relação com o seu espaço serve de inspiração para as mais diversas obras (e digo “o humano em relação com o seu espaço ”pois é impossível falar do corpo sem falar de onde ele habita, a relação do corpo com o “extra-corpo” — na medicina  “extracorpórea” é a palavra que representa o fato de que uma função vital humana passou a ser exercida por um aparelho — é interessante então tentar imaginar a palavra despida de seu significado original, que representa uma problemática muito mais objetiva e material na relação corpóreo/extracorpóreo e tentar trazer ela para o nosso dia a dia onde também precisamos do nosso “extra-corpo” para vivermos nossas vidas, nossas relações com a tecnologia, com o transporte, com a habitação ilustram muito bem isso e por mais que não representem a vitalidade que um coração ou um pulmão representam para o ser humano ainda assim são relações vitais para nossa sobrevivência, e é por isso que se torna, de certa forma, impossível falar do corpo sem também falar do seu entorno), essa inspiração que gera a vontade de retratar a relação entre corpo e entorno parte de um ato de fascinação, documentar ou encenar a constante performance de alguém é não deixar com que palavras e movimentos se dissipem e se percam, porém, é acima de tudo imprimir o seu olhar a essa performance.

Em Retrato de Jason, o fascínio parte da diretora Shirley Clarke para a figura de Jason, a vontade dela de criar uma obra a partir do movimento daquele corpo é essencial para fazer esse documento. Os relatos de Jason que são contados a partir da sua performance, criam uma noção acerca da luta LGBT, da luta da emancipação racial e da luta da periferia nos Estados Unidos da década de 60. Jason evoca a tradição oral (a sua movimentação, os gestos, a entonação) para contar a sua história, a história de quem precisa falar para quem precisa ouvir, o que a diretora faz é criar um local de validação para a voz de Jason, eternizar uma voz marginalizada, uma voz que antecede o corpo (o filme começa com a história sobre a origem do nome de Jason, a origem de sua voz, ele precisa se impor e criar um novo nome para uma nova persona que carrega em sua própria existência, em sua própria voz a quebra de paradigmas). A voz nunca deixa de ser ouvida em Retrato de Jason, podemos não ter imagem, Jason pode não estar em foco, porém a sua voz nunca deixa de ser ouvida, a voz de Jason é a “arma” que ele usa para dar força a sua imagem, porém por mais que ela seja ininterrupta, não é mais importante que sua imagem, esses dois fatores são indissociáveis. É essa dialética que movimenta a narrativa e torna um filme de uma hora e quarenta e minutos que se constrói inteiramente em apenas um cenário e um personagem em um (magistral) mergulho intenso na vida e memória de um homem.

Enquanto Retrato de Jason parte de uma vontade concreta de se fazer uma obra sobre alguém que o fascina, na ficção de Retrato de uma Jovem em Chamas é a necessidade de fazer o retrato de alguém, a necessidade de imortalizar uma pessoa que gera a fascinação, cria o romance, um romance que é gerado da imagem e produz arte. E em Um Retrato em Luz e Calor, o corpo se desfaz junto do espaço, a imagem trepida devido ao efeito físico do desvio de luz (quando o calor destorce uma imagem), cada pixel se transforma em uma pincelada, é como se o equipamento tentasse decodificar o mundo (a máquina interpretando o espaço) e disso surge uma série de imagens impressionistas; é como Marianne que tenta descobrir o corpo que a fascina pela imagem de um outro retrato, feito por outro artista, inacabado, porém ela o queima, pois ele não pode existir, porque nele não está contido o romance e a subjetividade necessária para se ter um encontro real com o corpo da sua musa, e pelo mesmo motivo ela destrói o primeiro retrato que havia pintado de Héloïse, pois ele não nasceu de uma relação verdadeira, nele estava contido apenas a técnica não o sentimento de Marianne. Por isso, o movimento do diretor Bill Viola de levar seu equipamento ao limite para tentar registrar o ambiente e retratar corpos que ali estão é “impressionista” e como se apenas livrando-se de qualquer vaidade de tentar representar de maneira realista o espaço e seus objetos ele pudesse ter um retrato verdadeiro, uma real imagem que busca o sentimento contido em uma paisagem. Disso nasce um certo caráter geográfico do cinema, que ao lançar um olhar de pura subjetividade à uma paisagem consegue externar sentimentos contidos na geografia física da mesma: o eterno devir da tempestade em Black rain, White scars como representante do anseio megalomaníaco da urbanização; a passagem da mata atlântica ao cerrado após o assassinato em Garoto de Bressane; as rochas que tem seu processo de erosão acelerado por mãos humanas e causam uma letárgica tempestade de areia que coloca Mr.Badii em estado de náusea em Gosto de cereja do Kiarostami; a ilha em Retrato de uma Jovem em Chamas, isolada do mundo, repleta de rochas e penhascos, e com uma ventania que precede a tempestade, uma tempestade que agita os mares e a plantação, porém o mais importante é o fogo, combustível da paixão, que queima ininterrupto e arde a imagem, e por isso o espaço e tão importante quanto o corpo no retrato. Quando por meio do espaço da arte (um espaço que não é físico, porém e tão importante quanto) Shirley Clarke eterniza a voz de Jason, quando todo o entorno da ilha representa as dificuldades do romance entre duas mulheres no século 18, quando paisagem e corpos se fundem nos quadros de Bill Viola, isso é a validação do corpo no espaço, o pertencimento do homem no mundo, é a arte concretizando obras que mostram o homem ciente de seu lugar e assim, nós conseguimos maneiras de decodificar o nosso entorno para o compreender melhor e consequentemente lidarmos melhor com os nossos corpos e os seus retratos.

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Filmes citados que podem ser assistidos de graça na internet:

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