TERRA EM TRANSE (1967): A Política da Farsa pela Poesia da Desordem

 

“Eldorado, país interno, Atlântico”. Está é a primeira frase mostrada no filme, dirigido por Glauber Rocha, e não por acaso: Eldorado é uma lenda sobre a terra de ouro maciço, o dito lugar perfeito no planeta Terra; contudo, segundos depois da cartela aparecem homens armados, pessoas correndo, um papa jesuíta facialmente perdido, políticos preocupados e muita gritaria. Eldorado não é um país perfeito, (mesmo que, no decorrer da história, diversas riquezas naturais locais são citadas) longe disso, é o país da desordem. Eldorado é uma farsa.

Poesia e Política são o fio condutor da narrativa em Terra em Transe, guiada pelo protagonista Paulo Martins, numa forma inventiva de flashbacks, enquanto vive os últimos minutos de sua vida por ter sido baleado enquanto fugia. Assim, o filme abraça um lado desiludido, pessimista e crítico dos acontecimentos, mas sem perder a parte lírica-lúdica e o moral do poeta. Lançado em 1967, pode ser lido como uma crítica ao governo brasileiro no período da Ditadura Militar, ao enfraquecimento das políticas nacionais e consecutiva ascensão do imperialismo no Brasil, à classe burguesa de esquerda e à população enquanto massa; porém, o filme vai muito além desse espectro simplista e lugar-comum do cenário artístico brasileiro.

Terra em Transe é uma reflexão do próprio diretor sobre seu papel na sociedade e uma afirmação de que sem sangue nada muda, sem morte nada muda: se é necessária uma revolução, que ela seja feita pelo povo com armas e combate direto ao sistema. Jesus Cristo derramou seu sangue e morreu para que houvesse mudança, e, pensando nisso, Paulo diz que deve morrer para conseguir fazer alguma diferença. A morte como solução no final do filme revela uma progressão na mentalidade do personagem, visto que o assassinato do camponês, na província de Alecrim, reverbera como um grande problema, encadeando uma desilusão de Paulo com Vieira e sua volta para Eldorado, que por sua vez desencadeia uma série de desilusões e, consequentemente, seu ferimento fatal; mas a sua morte no desfecho do filme é mostrado como algo libertador e até como um certo mártir do movimento, tudo por sua visão vitimista, filmado numa câmera distante e estática, deixando claro que essa morte nada significa para o curso de Eldorado, mesmo sendo um dos principais pontos na trajetória do poeta. Ou seja, a morte de Paulo é insignificante no mundo político, mas libertadora no âmbito individual.


A presença do cristianismo no filme está sempre atrelada às figuras políticas, desde o padre que segue Vieira e os discursos de Diaz com uma cruz na mão até as traições de amigos próximos nas tramas políticas (Paulo trai Diaz, Fuentes trai Diaz, Diaz trai Paulo, Fuentes trai Paulo, etc.), a opinião do povo, que hora idolatra Vieira e o segue em multidões, hora quer derrubá-lo do poder – há um paralelo entra a história de Cristo e dos dogmas católicos com a situação política de Eldorado – e as ações dos personagens no jogo pelo poder, que no momento da traição de Fuentes fica claro as comparações simbólicas com o cristianismo estabelecidas pelo cineasta baiano: Paulo como Jesus (por isso deve morrer no fim, pensando que isso resultaria em mudanças), Fuentes como Judas, o traidor final de Paulo, e Diaz como o Diabo, com suas devidas proporções – comparações feitas a partir do olhar do poeta, que, no fim, é o olhar da câmera. Desse modo, a religião nada mais é do que uma forma de se fazer, e reafirmar, relações políticas e um meio estratégico para a consolidação da farsa como fator regente da sociedade.

A Política da Farsa é a única política no filme, fundamentada nas analogias ao cristianismo, sendo uma política suja, sem peso na consciência, mentirosa, corrupta, assassina e traidora. A Farsa é pregada como verdade e a verdade como Farsa, ninguém está impune da enganação. O trio principal é movido por essa peculiaridade: Vieira é o político do povo, mas de povo ele não tem nada, sempre comandado pela classe burguesa e pelo imperialismo da Splint, que sustenta a farsa de Eldorado ser um país economicamente independente através do extenso Império Fuentes; Diaz é figura constante no poder em diferentes governos, com o discurso de ser o redentor do povo (para o senador, ele próprio é o Cristo dessa geração), mas nunca saiu pelas ruas e províncias, locais onde o povo se encontra, está sempre só em ambientes vastos e vazios; e Paulo, por mais que lute contra a ordem implícita nos dois “lados” do embate, não representa o povo e o oprime sequencialmente, causando, indiretamente, a morte de dois habitantes de Alecrim.

Se Eldorado por si só já é uma farsa, além de ser refletido na política, essa característica está presente nos relacionamentos, mais especificamente nos relacionamentos amorosos de Paulo, que tem uma amante em Eldorado e um amor em Alecrim, e ainda participa de festas (quase orgias) sem nenhuma das duas, construindo uma ligação entre o coração dividido e a lealdade ilusória do amor com a orientação política e suas atitudes. Essa característica gera uma desordem na vida de Paulo e, de forma cíclica, é refletida para o campo de suas amizades, onde, em cada ciclo, é mais próximo de alguma figura e logo depois a antagoniza. Assim, Eldorado é baseado na Farsa e na Desordem, nada faz sentido e nada é o que parece ser, tudo está nas mãos de políticos e imperialistas. Eldorado é só mais um território de decepções e vidas descartáveis, um Terceiro Mundo de fato.

Enquanto a Política da Farsa é algo concreto e presente em toda a população, a Poesia da Desordem é fluída e única de Paulo, é seu olhar pré-póstumo sob os acontecimentos que vivência de Eldorado, algo explicito no filme todo, mas de modo bem didático na reportagem-denúncia sobre Diaz. O turbilhão de imagens líricas proporcionada pela montagem, que em certos momentos é imperceptível e em outros é frenética, em conjunto com a presença e ausência de trilha sonora não expõe, nos mínimos detalhes, a trama e nem os personagens em sua profunda psique, pelo contrário, proporciona uma experiência sensorial e emocional ao transmitir a agonia do protagonista nos seus últimos suspiros, com a vida passando por seus olhos, percebendo tudo o que fez e pelo que lutou foi em vão. Afinal, não existe outra saída a não ser o pensamento pessimista decorrente de sua recente, e fatal, derrota: o coroamento de Diaz como “rei” de Eldorado e a fuga falha, resultando em sua morte, significando o abandono de Sara, vislumbrada pela última vez correndo e se afastando do amado.

A verbalização da luta de classes, conceito fundamental do materialismo dialético e de qualquer protesto político esquerdista, feita por todos os personagens em algum momento, de forma explícita ou velada, proporciona enxergar a obra como fruto do seu tempo e da vivência de seu realizador. Portanto, Terra em Transe acaba sendo, em uma definição ampla, as reflexões de um ativista revolucionário aos 30 anos de idade no período ditatorial brasileiro pré AI-5, mas já carregado de um espírito pessimista em seus questionamentos de ideais pelos quais luta, tendo como fim a afirmação de que é preciso se libertar (pela morte) da vida política, pois tudo é uma farsa.

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Filmes citados que podem ser assistidos de graça na internet:

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