Homem-Aranha de Raimi e a natureza moralista francesa

 

Se pensarmos em moralismo a partir dos conceitos técnicos na filosofia, inevitavelmente nos recordamos do impulso que movia o pensamento dos moralistas franceses, em essência tal impulso tem por interesse a observação do comportamento humano. O moralista é alguém que olha para a natureza humana, querendo trazer à tona aquilo que ela tenta esconder. Ou seja, a tendência do pensamento moralista é de revirar aquilo que não quer que se revire. Grandes nomes na fundamentação desse pensamento são Blaise Pascal, Jean de La Bruyère e François de La Rochefoucauld, suas máximas propagaram a essência de seus pensamentos, chegando até mesmo na nossa dramaturgia, como exemplo o dramaturgo Nelson Rodrigues. Partindo dessa ideia, podemos notar no movimento narrativo em que se constrói a trilogia Homem-Aranha, de Sam Raimi, o mesmo impulso de criar sentido a partir do retrato da moral que acompanha o ser humano. Como o texto tem por objetivo a crítica cinematográfica, não proponho interesse em aprofundar nos filósofos franceses, muito menos em apresentar meu posicionamento frente suas respectivas análises. A crítica pretende apenas formular uma ideia sobre como o diretor lida com a linguagem nos filmes em questão e faz com que a unidade se torne associável à dada natureza da filosofia moralista francesa.

Assim, as frases “A virtude de uma pessoa mede-se não por ações excepcionais, mas pelos hábitos cotidianos” e “Há duas espécies de homens: uns, justos, que se consideram pecadores, e os pecadores que se consideram justos”, ambas de Blaise Pascal, nos apresentam duas colocações: a primeira relacionada objetivamente na proposição de reflexão do autor, proposição essa que parte de uma observação e categorização do comportamento das pessoas, e a segunda, agora partindo para uma abordagem mais subjetiva, a relação que se pode estabelecer entre a trilogia de Sam Raimi e os pensamentos do filósofo. Nosso enfoque aqui será na segunda colocação, onde estabeleceremos o moralismo marcante da trilogia.

Algo marcante nos três filmes é a evidente reflexão de que o que molda o herói não é o poder e sim quem usa, não é o traje, mas sim quem ele esconde. Ao assumir tal moralismo, é inevitável que o trabalho na construção narrativa se torne também humanista, pois passa a ter como centro de sua obsessão o humano e é isso que faz esse Homem-Aranha ser palpável, pois ele não se fixa apenas no ideal de super herói, ele explora e desnuda a fraqueza do ser humano que o antecede, torna fácil a criação de um laço afetivo de identificação com o espectador. O que funciona muito bem no trabalhar do diretor com a linguagem, grandes características do cinema de Sam Raimi, é: o grande enfoque nos detalhes, o deslocamento da câmera no espaço e a versatilidade em lidar com gêneros. O detalhismo ganha muita força em acompanhar, por meio de planos fechados, as expressões de seus personagens, que refletem institivamente seus sentimentos e sensações, nos ajudando a compreender o estado dos mesmos. Já o deslocamento da câmera também colabora em agregar sensações, porém este, por sua vez, não nos situa na condição dos personagens, e sim na incorporação da sensação no plano em si, é esse movimento responsável por criar em nós o suspense evidente nas obras. Quanto a sua versatilidade em lidar com gêneros, se faz essencial a partir do momento que ela abre portas para a entrada dos sentimentos e sensações. Ao ir de comédia à suspense, o filme abrange uma gama de componentes humanos, não se limita à um contexto só, retratando de maneira próxima a humanidade. Trabalho este que se manifesta também no visual dos uniformes, os trajes dos vilões são evidentemente pautados em uma abordagem de horror, o que colabora no tratar das aparências, pela identidade se tornam os monstros que vemos no decorrer das sequências.

Através da forma o diretor compreende a história de um garoto que acidentalmente ganha super poderes e tem de amadurecer (em caráter íntimo e pessoal de Peter) com eles e nos conecta de maneira imersiva com tal história e herói. Passa por três fases da estruturação dessa ideia, três fases que são marcadas, respectivamente, pelos três filmes pertencentes à trilogia. No primeiro filme, temos a determinação da visão, nos apresenta os personagens, suas respectivas relações e principalmente cria as categorizações herói e vilão. Já no segundo, o diretor submete todo universo estabelecido no primeiro filme em crise, no âmbito entre a aparência e o íntimo. E no terceiro, é evidente a contradição, o filme se impõe em um questionamento moral rigoroso.

Como dito, o primeiro filme da trilogia inicia essa reflexão e delimita o que seria um herói e o que seria um vilão. Partindo dessa divisão dicotômica superficial (aparente), nada é mais claro do que uma dualidade aqui, o bem em oposição ao mal e nada além do caráter define de qual lado o personagem se encaixa, pois temos duas pessoas que ganham super poderes, ou seja, antes disso eram apenas normais, e cabe à sua índole definir como cada um usará essa ferramenta. O herói é aquele que nega ao ego e assume uma posição altruísta, já o vilão é aquele que cede ao ego e assume uma atitude megalomaníaca. Mas muito para além da superficialidade da excepcionalidade em suas ações, tudo parte da pessoa, a categoria em que ela se enquadra se trata de aparência, se trata de ideal. Como vamos perceber, existem muitas semelhanças entre a pessoa herói e a pessoa vilão, que frente ao ideal são postas abaixo. Sendo assim, os sujeitos herói e vilão se tornam um conceito abstrato mediado pela aparência.

Apesar de existir uma dicotomia estabelecida, é impressionante como o filme é auto ciente de sua unidade, pois se fosse algo exclusivamente maniqueísta seria frustrada toda proposta. Ele trabalha para além de uma lógica de lados opostos, se torna dialético, ao adotar uma posição de ambiguidade, uma dualidade pertencente à estrutura dos personagens, ele explora suas aflições e quebra assim a perfeição do herói. Não temos um modelo que vai além do ser humano, é um herói composto por falhas, fraquezas e limitações, que também tem suas angústias internas, mas que acaba não cedendo ao ego. Assim como no vilão também há a quebra daquela demonização, é um personagem que tem uma justificativa para seus atos, vimos suas aflições e sabemos onde está sua fraqueza: no ego (o que não funciona a todo momento no filme). Algo que se estabelece muito bem também na contraposição entre a exuberância do personagem de Dafoe e a simplicidade do personagem de Tobey. Temos a construção das dualidades: Peter Parker e Homem-Aranha, Norman Osborn e Duende Verde.

Ato este que colabora para a humanização da unidade, que abrange em sua premissa (não só ao longo deste filme, mas também na trilogia em si) o fracasso do ser humano. Peter é basicamente um nerd azarado, um jovem introvertido e não popular, desempregado e sem sorte no amor, assim que este se torna o Homem-Aranha, mesmo tendo poder, não consegue evitar a morte de seu tio, toma muita porrada, não consegue proteger quem ama e é rejeitado por parte da cidade. Norman é um pai ausente, um cientista frustrado e um empresário falido, assim que se torna o Duende Verde, se entrega ao pensamento megalomaníaco, tem ataques frustrados pelo homem aranha (nunca leva a melhor em cima do herói) e tem seu plano de se juntar com o Aranha mal sucedido. Fora também os outros personagens: Mary Jane nunca conquista seu sonho de ser atriz e tem uma vida amorosa frustrada, Harry é um jovem mimado e que recebe menos atenção de seu pai que os outros personagens. Talvez os únicos que não tem exposto suas frustrações são Ben e May, os quais são idosos e assim tem uma fraqueza voltada para suas limitações física, o que notamos quando tais não conseguem se defender e se tornam alvos fáceis de ataques.

Vemos uma humanidade medíocre que, entre conflitos de super heróis e super vilões, tem um povo que é extremamente frágil perto do poder que esses dois lados detém, pois não podem fazer nada e sempre estão a mercê das consequências dessas brigas, fora também de sempre estarem submetidos aos planos mirabolantes dos vilões, não podendo fazer nada e dependendo do herói. Quanto ao herói, este está sempre a ser julgado por seu caráter, está à mercê de sua índole, está à mercê das decisões difíceis que deve tomar, das situações controversas e ciente de que não pode salvar a todos sempre, submerso no entendimento de sua limitação, assim esvaziando toda a noção de perfeição que o sonda. O vilão por sua vez, além de ser por essência um erro, também sempre é submetido à derrota, o mesmo, apesar de ter planos super megalomaníacos, como já dito, não consegue nunca os concretizar.

Essa mediocridade nos revela algo dentro não só do filme, mas também do contexto histórico cinematográfico em que estava inserido. Temos ali nos anos 2000 uma relação mais direta e crítica com a tecnologia, a mesma também passa a denotar algo que está acima da humanidade, algo que de certa forma a oprime por sua grandeza e magnitude, assim como os poderes. Ocorre essa mesma intenção de marcar a mediocridade em filmes como Pulse, de Kiyoshi Kurosawa e Hollow Man, de Paul Verhouven. Enquanto o filme de Kiyoshi assume essa posição mais metafísica com relaçao à tecnologia em si, o de Verhouven se assemelha mais ao formato como a mesma é apresentada no filme de Sam Raimi, tanto no sentido técnico, quanto no crítico. Vemos nos dois uma evolução no uso e na incorporação do cgi no cinema, elemento esse que nas duas obras cumpre muito bem seu papel: gerar efeitos visuais maiores para que o filme não busque um realismo e parte para uma zona fictícia, que também afirma a pequenez carnal humana perto de tais efeitos. Enquanto à sua forma crítica, contorna a periculosidade incontrolável que existe na tecnologia quando é submetida à índole questionável do humano. Aqui temos Norman se tornando um vilão, já em Hollow Man temos o cientista egocêntrico Sebastian revelando seu lado psicótico e se tornando um assassino em série.

Tendo sua lógica estabelecida, é interessante observar como as sequências posteriores ainda assim se estabelecem muito bem como obras individuais em seus sentidos, não seguem aquela ideia de “universo compartilhado” (o que tem sido constantemente utilizado nos últimos anos). Mesmo fazendo parte do mesmo universo, elas não necessitam da outra para a criação de seu sentido. Pode parecer contraditório dizer isso e fundamentar uma ideia que liga a trilogia, mas é exatamente essa multiplicidade de sentidos que justifica todo movimento moralista descrito, reflete toda ambiguidade presente na individualidade das obras.


Assim, em Homem-Aranha 2, o diretor agrega sentido ao seu filme a partir da crise entre o uniforme (Homem-Aranha) e o carnal (Peter Parker), retoma novamente a importância da escolha e tonifica o estabelecimento do íntimo de quem veste a identidade. No movimento de fazer com que Peter Parker passe a perder seus poderes por causa de seus conflitos pessoais, que envolvem diretamente o Homem-Aranha, estabelece a dificuldade do mesmo em conciliar sua aparência com seu lado verdadeiro, real, humano. Temos a impossibilidade do amor com Mary Jane (personagem interessante para a construção da humanismo), o ódio de Harry pelo herói, o atraso escolar de Peter, sua experiência morando sozinho, sua relação com o trabalho e o trauma que compartilha com sua avó, além da culpa que o mesmo sente em ter mentido para o tio Ben. O que dá voz à dialética que compõe o personagem, ao presenciar o fracasso na vida de Peter revela também a ineficácia do herói, porque se torna necessário que ele negue sua natureza humana para que possa sustentar a máscara que veste.

Interessante também que nesse filme a identidade cai de maneira rigorosa, ao ponto de Peter revelar a realidade por de trás da máscara a basicamente todos, evidenciando o papel de ferramenta, de superficialidade aparente do poder e do herói, abrangendo toda nudez presente no pensamento filosófico francês, despindo o personagem de todo ideal pertinente, para que se evidencie sua limitação com humano. Peter necessita assumir isso e assume ao ver a existência da falta de um herói. A humanidade medíocre carece de um ideal para que possa firmar sua fé e moral, esse ato agrega no sentido de que, para que tal moralismo se sustente, é necessário que exista um ideal, sem ele o dado moralismo não sustenta suas categorizações, carece de um espelho em que possa se espelhar. Ideal este não apenas presente no teor benevolente do herói, como também no maligno do vilão. Mostra-se novamente o conceito abstrato de ambas identidades ao se fundamentar sobre elas um idealismo, que se faz presente justamente na formação da aparência.

Talvez seja este o filme em que toda proposta se apresenta e se conclui de maneira mais eficiente, tanto nos termos técnicos quanto no desenvolvimento do conteúdo. O diretor transita muito bem entre drama, suspense e comédia aqui. Toda demarcação do fracasso é evidente, o herói some e o vilão além de surgir do mesmo ao final também fracassa, é demarcada novamente por meio de elementos gráficos e presentes na história a mediocridade perante o poder e a tecnologia. Ele não só sintetiza tudo que foi apresentado na trilogia como também resulta em uma experiência muito auto ciente e expressiva da autoria de seu diretor.

Já em Homem-Aranha 3, tendo em vista a grande aceitação e admiração que o ideal Homem-Aranha passa a ter, se constrói um questionamento frente o ideal construído. Ganha proporções consideravelmente grandíloquas perante seus antecessores na franquia, porque se propõe a um tratar muito mais complexo da jornada frente ao que foi feito até ali por Sam Raimi. Isso se apresenta na quantidade de personagens explorados e seus diferentes pontos de vista, na intensidade dos poderes, nos movimentos narrativos e no aumento do uso de imagens gráficas. Tal grandiloquência se dá devido ao tom pomposo que existe em torno do conceito de "poder", que estabelece a relação das personagens e que é retratado apenas graficamente, para além disso se torna o centro de toda produção de sentido no filme.

Retrata de maneira marcante a escolha frente a pressão do poder e mostra isso quando torna o lado corruptível do ser humano externo. Lado esse que se expressa pela vingança, tendo como consequência um jogo doentio, o qual progride até se concluir no ato final, onde toda construção dos personagens já está definida, destacando o lado bom (o herói) através da redenção e o lado ruim (o vilão) através da perpetuação dessa vingança (e digo aqui lados pois é a maneira dialética que o diretor estabelece logo no primeiro filmes para lidar com as identidades herói e vilão). Então, assim como os deuses gregos demonstram sentimentos apesar de sua grandiosidade, aqui os “supers” também o fazem, o que reforça o lado humanista que foi construído durante toda a trilogia. Nesse sentido, longe de qualquer presunção em colocar os diretores em pé de igualdade, pode se estabelecer um paralelo com o épico em Kurosawa, que principalmente em seu filme Ran, de 1985, demarca muito bem o humanismo e dialética em sua mise-en-scène. Toda tragédia e falha humana presente no épico também é construída aqui, algo totalmente pertinente dado a jornada heroica que se tem do personagem central.

O poder, como já dito, é responsável por revelar de maneira mais declarada o que realmente são aquelas personagens e nos tirar do que eles aparentam ser, é da pressão que a posse de tal dom estabelece que nos é revelada a real face de tais personagens por debaixo de toda identidade. E daqui parte o movimento do filme, ao mesmo tempo que o poder reafirma a humanidade dos personagens, ele também os compreende na idealização de uma categoria. Já em relação a qual categoria eles se enquadram, essa é definida pela moral de suas escolhas, a partir do que eles decidem fazer com tal poder, evidenciando novamente a posição de ferramenta do mesmo.

Acompanhamos a origem de um vilão que tem seus atos justificados pela necessidade de manter o bem estar e saúde de sua filha, a de um vilão que já demonstrava ser uma pessoa de baixa índole e agora está em busca de acabar com quem interrompeu o rumo das coisas em sua vida, a de um herói que supera um dilema interno forte e a tentativa do Homem-Aranha de reestabelecer sua imagem após tê-la manchado. Existem dois papéis que ganham destaque: o Homem-Areia e o Homem-Aranha. Destaco esses, pois se revela muito bem o moralismo e o humanismo em Sam Raimi, apesar de termos no personagem de Flint Marko uma grande integridade e honra quanto suas intenções humanas, ele é identificado como vilão pelo desvio moral no que decide fazer com seus poderes (assaltos), assim como Peter Parker quebra toda construção de homem bom que tinha durante boa parte do filme (apesar de ser influenciado pelo simbionte), mas tem sua moral como herói intacta por conta do bem que faz utilizando seus poderes. Mas apesar da categorização, como falei, esses dois perfis fazem parte da mesma personagem e nenhum deles é descartado, então se tem uma construção moral e humana dos heróis e vilões, o que no final resulta em Flint e Peter sendo perdoados.

Isso nos leva a outro ponto, que tem relação com as outras personagens, já aqui humanas normais, presentes no filme: Mary Jane, Norman Osborn, Penny Marko e Gwen Stacy. Sua presença no filme se dá não para, no caso das mulheres, representar personagens frágeis e não para, no caso de Norman, representar uma vilania, mas ambas presenças estão lá para reforçar o lado humano, as fraquezas dos “supers”. Sendo assim, Mary Jane se torna o dilema na vida de Peter, de escolher entre o Homem-Aranha ou sua noiva, Norman se torna o trauma que gera todo conflito interno de Harry, Penny é o motivo pelo qual Flint se arrisca no crime e Gwen um dos motivos pelo qual Eddie Brock quer se vingar de Peter (ainda mais que seja mais explorado seu lado egoísta do que sentimental). Estão ali justamente para evidenciar o lugar de ferramenta que os poderes assumem, são componentes indispensáveis da obra e de seus personagens, mas não anulam a humanidade em que o filme de Sam Raimi gira em torno e que, dessa forma, é muito bem expresso, fica evidente o que guia a trilogia. Seu caráter de “super” não interfere em nada nas suas questões pessoais.

"Com grandes poderes, vem grandes responsabilidades" talvez seja, não ironicamente, a melhor frase pra definir Homem-Aranha que, além de abrir com chave de ouro as portas para o gênero e representar muito bem a intenção do mesmo, que é trazer bons momentos e memórias para espectador, propõe, em cada filme, uma unidade muito auto ciente de seu potencial, traz uma construção que passa longe de ser superficial e reflete sobre a limitação humana, em seus sentidos mais amplos e morais, materializa de forma visceral a maneira como assumimos identidades afim de propagar um ideal, que por debaixo de toda fantasia, o ideal perde seu sentido pela essência falha e medíocre do ser humano. É um maravilhoso exemplo de filme que reflete sua época e como um gênero tão subestimado intelectualmente tem capacidade de ser algo grande.

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